segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

[PGM] A Estória da Fábrica de Cadáveres da PGM

Joachim Neander, Universidade de Bremen (Alemanha)

Randal Marlin, Carleton University (Canadá)

 

 
Estórias de atrocidade, como um meio de incitar as pessoas à guerra, têm sido empregadas de forma bem sucedida pelo menos desde os tempos das Cruzadas da Idade Média até os dias atuais. O incitamento ao ódio abre caminho para a guerra e no combate diminui o nível de inibição para matar. O soldado que mata um inimigo se sente bem com a possibilidade de livrar o mundo de um monstro, não de um ser humano. A Primeira Guerra Mundial chegou na época quando o orgulho nacionalista e o fervor patriótico estavam no auge, e as ambições imperialistas colidiam. A devoção ao país, Pátria, “La Patrie” era tal que muitos não tinham remorso em subordinar as regras éticas comuns às necessidades dominantes daquele objeto de devoção.

A platéia-alvo deve acreditar que as estórias são verdadeiras e, em relação a isso, ajuda muito se as estórias forem fatos reais. Mas a credibilidade das estórias, e a extensão que elas reverberam na imaginação e estimulam o horror e a revolta são o que interessam para influenciar os alvos.

Pela sua magnitude, impacto e durabilidade, uma estória de atrocidade da Primeira Guerra Mundial se sobressai em relação às outras. Referimo-nos à estória da Planta de Utilização de Corpos, usada para demonizar os alemães. (Para abreviar, chamaremo-la estória da “Fábrica de Cadáveres” daqui por diante.) De acordo com a estória, usada para sustentar e intensificar uma guerra em curso, os alemães estavam cozinhando seus próprios soldados mortos para obter produtos úteis – comida de porco, fertilizante, glicerina, lubrificantes e, não menos importante, sabão.

No fundo aqui, mas para não ser esquecido, são as questões éticas relacionadas com a história do pós-guerra dessa falsidade. Como um importante fator para a demonização dos alemães, a estória compartilha responsabilidade em alguma medida com os duros termos do Tratado de Versalhes e os pagamentos de reparações, plantando as sementes para a guerra futura. A negação oficial britânica da estória em 1925 mais tarde levou ao ceticismo quando relatórios sobre o Holocausto surgiram no início da Segunda Guerra Mundial.     

A âncora principal para a estória veio com a publicação simultânea nas mídias de Northcliffe (em especial o Times e o Daily Mail, ambos datados de 17 de abril de 1917) do que pretendia ser uma tradução de um jornal belga de língua francesa de um suposto relato de testemunha de uma Fábrica de Cadáveres, justaposto a uma tradução de um jornal respeitado de Berlim, o Lokal-Anzeiger, parecendo corroborar o relato em língua francesa. Um menção breve da “admissão” do jornal alemão foi feita por um colunista no Times do dia anterior, mas o impacto total veio com a justaposição do texto longo em língua francesa com o texto de fonte alemã em 17 de abril de 1917. Aqui estão trechos do Times deste dia:

Tomamos conhecimento há muito tempo que os alemães retiram seus mortos da linha de combate, colocam-nos em embrulhos com três ou quatro corpos amarrados com arame metálico e então despacham esses horríveis embrulhos para a retaguarda.

A fábrica principal (das Fábricas de Cadáveres)... foi construída a 1.000 jardas da linha ferroviária conectando St. Vith, próximo da fronteira belga, com Gerolstein, no desolado e pouco freqüentado distrito de Eifel, a sudoeste de Coblentz...

A fábrica é invisível da linha ferroviária. Está instalada no interior das florestas do país, com uma alta densidade de árvores ao redor dela. Arames farpados cercam-na. Uma trilha dupla leva até ela. As obras têm cerca de 700 pés de comprimento por 110 pés de largura, e a linha ferroviária percorre-as completamente.

Os trens chegam cheios de corpos empilhados, que são descarregados pelos trabalhadores que vivem nas obras. Os homens vestem macacões e máscaras com óculos de mica. Eles estão equipados com varas longas curvas e puxam as pilhas de corpos para uma esteira interminável, que os agarram com ganchos enormes, presos a intervalos de 2 pés. Os corpos são transportados nesta esteira interminável para um compartimento estreito e longo, onde eles passam por um banho que os desinfeta. Eles então atravessam uma câmara de secagem e finalmente são transportados a um digestor ou caldeira grande, na qual eles são lançados por um equipamento que os retira da esteira. No digestor, eles permanecem por seis ou oito horas, e são tratados por vapor, que os fraciona enquanto eles são mexidos pela maquinaria.

A partir deste tratamento, são obtidos muitos produtos. As gorduras são quebradas em estearina, uma espécie de sebo, e óleos, que exigem ser redestilados antes que possam ser usados. O processo de destilação é continuado pela fervura do óleo com carbonato de soda, e uma parte dos produtos resultantes é usada pelos fabricantes de sabão alemães...

 Já em 1915, boatos do front sobre a estória da Fábrica de Cadáveres parecem ter circulado em Londres, mas sem crédito geral ou espalhado. Mesmo antes disso houve uma estória de primeira página em um diário de Madrid, La Correspondencia de España, reportando na primeira página de sua edição de 23 de novembro de 1914 que os alemães estavam fazendo uso de alto-fornos na Bélgica para o propósito de cremar os seus mortos. A fonte dada para a estória era o Daily Mail de Lorde Northcliff.

Em 19 de junho de 1916, o Ha-Herut de Jerusalém, o jornal da minoria judaica na cidade – na época ainda a Palestina Turca, informou seus leitores sobre os boatos de que os alemães estavam transportando os corpos de seus soldados mortos para grandes crematórios, atrás das linhas de batalha, onde eles eram incinerados. Mas ele também citou uma agência de notícias alemã que “não havia base nestes boatos”. É importante salientar que nesta época a incineração de corpos humanos encontrava oposição grande na sociedade cristã como sendo “pagã” e “contra todas as tradições”. O simples relato como fato dos alemães cremarem seus soldados teria sido o suficiente para deixá-los com má reputação. No mesmo ano, o cartunista holandês Louis Raemaekers representou corpos alemães presos informalmente juntos em pacotes de quatro, com destino incerto.

Houve, ainda, uma estória publicada no North China Herald (3 de março de 1917), relatando que o embaixador alemão, Almirante Von Hintze, “triunfantemente disse que eles estavam produzindo glicerina a partir de soldados mortos”... A possibilidade da propaganda britânica ter instigado essa notícia deve ser considerada. Os alemães na China, na época, tinham outros problemas devido à deterioração rápida das relações sino-alemãs por causa da declaração de guerra submarina indiscriminada em 1º. De fevereiro de 1917, que teve sérias conseqüências para a economia chinesa e a segurança da frota mercante chinesa.

Uma fonte diferente para a origem da estória da Fábrica de Cadáveres foi dada pelo repórter Walter Littlefield do New York Times, que obteve de um correspondente desconhecido de um “bem conhecido” jornal sem nome de Amsterdã, o qual obteve o texto completo alemão da ordem militar do dia da Sexta Divisão Bávara de Reserva, datada de 21 de dezembro de 1916, que diz:

É necessário novamente prestar atenção para o fato de que quando os corpos são entregues para os Estabelecimentos de Utilização de Cadáveres detalhes devem acompanhar como as unidades militares que eles vieram, a data da morte, doenças e informações relacionadas a epidemias. (NYT, 29 de novembro de 1925)

Estas versões iniciais ajudaram a circular a idéia da Fábrica de Cadáveres, mas elas careciam de evidência concreta. Foi isto o que a imprensa de Northcliff apresentou aos seus leitores. A âncora para a credibilidade veio da justaposição do que foi apresentado como a admissão oficial alemã da existência da Fábrica de Cadáveres, junto com uma descrição completa de tal fábrica por uma suposta testemunha.

O que era tão convincente nas publicações de Northcliff de 17 de abril de 1917? A resposta é que o jornal belga de língua francesa, Indépendance Belge de 10 de abril de 1917 deu tal detalhe, uma descrição longa e crua do interior de uma destas instalações como a impressão de alguém que esteve lá. A suposta “testemunha” testemunhou ter visto corpos sendo descarregados dos trens, e evaporadas. Mais importante, o Indépendance Belge não apresentou a estória como se fosse sua, mas atribuída a um outro jornal, La Belgique, descrito como sendo publicado em Leiden, na Holanda, assim tornando a verificação difícil, mas não impossível. Nenhuma data é dada para quando o La Belgique supostamente publicou o artigo. Sozinha, a estória seria dificilmente convincente a um leitor mais culto.

O jornal alemão em questão, o Lokal-Anzeiger também datado de 10 de abril de 1917 trouxe um relato do correspondente de guerra Karl Rosner quando ele viajou próximo da frente norte de Reims, França. O relato foi detalhado em 5 de abril. No final de seu relatório, ele chamou a atenção em poucas linhas para um “estabelecimento de utilização de carcaça” (Kadaververwertungsanstalt) que ele viu e pode sentir o cheiro à distância. Nos jornais de Northcliffe esta longa palavra alemã foi mal traduzida como “Estabelecimento de Exploração de Cadáveres”. A palavra “Kadaver”, a primeira parte da palavra, é reservada para carcaças de animais no linguajar comum alemão assim como no vocabulário militar, enquanto que “Leiche” se refere a um corpo humano.

A palavra “Kadaver” não era somente uma má tradução do Times e do Daily Mail. De menor importância, mais ainda significativo, foi a má tradução da palavra alemã “Leim”. Esta palavra significa “cola” em alemão. Rosner reportou ter experimentado “um pesado cheiro no ar, como se cola estivesse sendo queimada.” Isto faria muito sentido se cavalos mortos estivessem sendo fervidos. Na época, o uso de cavalos para fazer cola era difundido. Uma tradução acurada teria alertado as pessoas sobre as carcaças de cavalos e não os cadáveres de pessoas, sendo utilizados na planta industrial. O “leim” alemão parece com o “Lime” (cal) inglês e era fácil introduzir aquela palavra similar como uma “tradução”. A palavra “lime” teria parecido perfeitamente lógica para os leitores, dado que cal viva era freqüentemente usada para desinfetar corpos.

O que propomos mostrar é que a imprensa de Northcliffe não foi vítima de má tradução inocente, mas deliberadamente inventou esta estória enganosa, em conjunto com os propagandistas britânicos e belgas em Londres. No decorrer do tempo, a estória da Fábrica de Cadáveres tornou-se mais e mais uma “lenda urbana” e desenvolveu vida própria. Era contada e recontada nas trincheiras e nos lares. O soldado aliado morto era adicionado às “fontes”. Cientistas discutiam detalhes técnicos e a lucratividade das fábricas de cadáveres alemãs, e artistas expressavam o nojo e horror nos cartazes de publicidade. Nos EUA e Europa Oriental, “sabão” tornou-se mais e mais um “produto” principal das fábricas. Isto certamente tinha razões diferentes. Quando os EUA entraram na Guerra, o sabão de repente tornou-se um artigo raro (como pode ser visto nos jornais que incessantemente pediam para economizer o produto), a falta do qual foi sentida por todos, enquanto que na Europa oriental havia uma tradição folclórica de assustar crianças traquinas com “um homem que faria delas sabão.”            

Com o início da Segunda Guerra Mundial, a estória da fábrica de cadáveres reapareceu como boato de uma “fábrica de sabão” nos guetos da Polônia ocupada, de onde ele se espalhou como um incêndio. Em meados de 1942, alcançou o interior do Reich. Em agosto do mesmo ano, ele cruzou os mares em direção da Grã-Bretanha e dos EUA como uma parte integral das notícias sobre o extermínio nazista dos judeus. A mídia americana ansiosamente abordou a questão e alimentou seus leitores e ouvintes com estórias sobre fábricas, nas quais os alemães transformavam suas vítimas em sabão e outros produtos vitais. A incrível semelhança com as fábricas de cadáveres da Primeira Guerra Mundial, entretanto, fez com que os líderes desprezassem as notícias como sendo propaganda judaico-polonesa: “Ninguém queria ser enganado pela segunda vez em apenas uma geração.” (Laqueur, 1982). Entre os historiadores do Holocausto há pouca dúvida que a estória da Fábrica de Cadáveres contribuiu para o fato deplorável que decisões que poderiam ter resgatado muitas vidas judias foram tomadas hesitantemente, e geralmente muito tarde.

Após a derrota da Alemanha, “sabão judaico”, junto com “abajures” alegadamente feitos de carne judaica (um boato de Buchenwald, espalhado pela mídia americana e soviética após o fim da guerra como “fato”) tornaram-se os ícones do Holocausto. Como “produtos finais” da Solução Final da Questão Judaica e alegadamente produzidos pelos alemães em escala industrial, eles contribuíram consideravelmente para a imagem do Holocausto na percepção do público, especialmente nos EUA e Israel. Não devemos nos surpreender, portanto, que em 1989 um pesquisador israelense que acreditava nas fábricas de cadáveres da Primeira Guerra Mundial não eram meramente um engodo propagandístico e achava que elas de fato existiram e serviram como modelo para Auschwitz, Belzec e Treblinka.                    

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