terça-feira, 19 de março de 2013

[SGM] Terras de Sangue: A Europa entre Hitler e Stalin

Resenha do livro Bloodlands: Europe Between Hitler and Stalin, de Timothy Snyder.


Para a maioria das pessoas, que se interessa pela Segunda Guerra Mundial, a carnificina começou em 1939, bem antes das potências vencedoras do conflito – Estados Unidos e União Soviética – entrarem na guerra oficialmente. Timothy Snyder, um professor de história em Yale, mostra-nos como o extermínio em massa de pessoas e a destruição resultante dessa ação começaram no regime de Stalin e então passaram para o Reich de Hitler.

A época estudada está entre 1933 – o início da segunda onda de fome na Ucrânia – e 1945. A região de interesse é o território que fica entre a Polônia central e aproximadamente a fronteira da Rússia, cobrindo a Polônia oriental, Ucrânia, Belarus e as repúblicas bálticas. Naqueles anos e naqueles locais, um total inimaginável de 14 milhões de pessoas inocentes, a maioria dos quais mulheres e crianças, foram executadas, gaseadas ou intencionalmente deixadas para morrer de fome. As “terras de sangue” tornaram-se dois países: o Reich alemão e a União Soviética. Agindo em harmonia, estes dois países engoliram outros países da região. Claramente, então, as terras de sangue não são somente a estória da fome, guerra e massacre, mas também da conquista imperial.

Os três principais grupos de vítimas civis foram os judeus exterminados pelos alemães, os não-judeus exterminados também pelos alemães e os cidadãos soviéticos mortos por seu próprio governo. Neste caso, Snyder também poderia ter incluído os judeus e não-judeus mortos pelos aliados da Alemanha, pois sem a ação destes, muito menos judeus, ou poloneses e russos, teriam perecido. Como Snyder mostra, sem a polícia judaica, que tomava conta dos guetos e não permitia a saída dos judeus, mais pessoas desse povo teriam sido capazes de evitar a deportação para os campos de extermínio.

No relato de Snyder, as terras de sangue tiveram três períodos. O primeiro aconteceu entre 1933 e 1938, quando os soviéticos sozinhos realizaram a matança; a segunda fase, de 1939 e 1941, foi marcada pela colaboração de alemães e soviéticos na tarefa; e a terceira durou de 1941 a 1945, quando os alemães foram os principais responsáveis pelo extermínio em massa.

Acima de tudo, muito mais pessoas morreram nas terras de sangue nos anos 1930 e 1940 – de fome, tifo,frio, fogo, trabalho forçado, tortura e assassinato – do que em todo o resto da Europa. Podemos contestar a tese de Snyder argumentando que outras áreas da Europa foram analogamente afetadas – a Alemanha, com seu meio milhão de civis aniquilados pelos bombardeios aliados; ou a Grécia, onde 100.000 civis morreram durante a fome de 1941-42; ou o norte da Holanda, onde milhares foram deixados para morrer de fome no início de 1945; ou a Romênia, onde 300.000 judeus foram eliminados num Holocausto interno; ou a Hungria, onde em 1944, as autoridades entregaram 400.000 judeus para o extermínio nos campos alemães; ou a Iugoslávia, onde a guerra civil resultou em centenas de milhares de vítimas; ou em outros lugares da União Soviética, onde muitas minorias étnicas vivendo a leste das terras de sangue foram deportadas e parcialmente aniquiladas sob as ordens de Stalin durante a guerra. Porém, devemos concordar com Snyder essa honra maldita, de ter perdido a maior proporção da população durante a guerra, pertence à Polônia, Ucrânia, Belarus, as repúblicas bálticas e à Rússia ocidental. A tragédia dos outros estados europeus empalidece em comparação.

Na União Soviética, parece agora que, apesar de cerca de um milhão de pessoas terem perecido nos campos de trabalho, nove entre 10 prisioneiros de gulag sobreviveram. O grande assassinato de Stalin aconteceu não na Sibéria, mas nas repúblicas ocidentais soviéticas, acima de tudo a Ucrânia, onde nos anos 1930 pelo menos 3 milhões de pessoas morreram em fomes induzidas no massacre do campesinato kulak (N. do T.: o número pode atingir até 7 milhões, de acordo com alguns autores). A Ucrânia tornou-se o marco zero da fome induzida. O regime comunista confiscou os grãos das cidades, enquanto vigiava as fronteiras para impedir que o povo escapasse, ou fosse testemunha. O Holodomor, como os ucranianos o chamam, destruiu mais de 3 milhões de homens, mulheres e crianças. Mais de 2.500 foram condenados ao canibalismo em 1932 e 1933. Em 1937, “o censo soviético encontrou oito milhões de pessoas a menos do que havia sido projetado,” em grande parte na Ucrânia. Stalin se recusou a divulgar a informação e, consistente com sua prática geral, “mandou executar os demógrafos.”

As causas e motivações da coletivização, e da resultante fome catastrófica na Ucrânia Soviética e em outros lugares da URSS, ainda são calorosamente debatidas, mas pelo menos ninguém diz que ela não aconteceu. Isto nem sempre foi o caso. Em 1932-33, e em alguns casos mais tarde, todos os líderes soviéticos, e também alguns observadores ocidentais, como os jornalistas Walter Duranty e Louis Fischer, assim como o ex-primeiro ministro francês Édouard Herriot, negaram o fato completamente. As reportagens honestas do jornalista galês Gareth Jones e do jornalista britânico Malcolm Muggeridge foram censuradas pela mídia ocidental, tão grande era o fascínio do mundo com o experimento soviético. E todos aqueles que admitiam que havia fome em várias partes da União Soviética geralmente utilizavam o princípio apelativo do “você não pode fazer um omelete sem quebrar uns poucos ovos” – isto é, apesar da fome ser lamentável, era também uma necessidade política e econômica, um elemento indispensável à modernização.

Snyder demonstra que ao invés de aliviar o sofrimento no interior da Ucrânia, a liderança soviética fez o que pode para agravar as consequências da péssima colheita e garantir a fome. O campesinato como um todo foi tratado como um bando de sabotadores e saqueadores. Desde que as cotas de entrega eram impossíveis de ser cumpridas, brigadas formadas de trabalhadores industriais de outras regiões foram formadas para bater nos camponeses e manter suas fazendas limpas. Aqueles suspeitos de esconder ou destruir suas produções eram fuzilados ou enviados a campos de concentração. Tendo sido negados a passaportes internos, os camponeses famintos foram proibidos de entrar nas cidades. Eles sequer podiam ir a um hospital. Milhares morreram nas estações ferroviárias, nas beiras das estradas ou nas vilas. Historicamente, em épocas de fome, os produtores têm mais alimento do que os consumidores, mas neste caso, os produtores estavam em situação pior do que aqueles que viviam nas cidades, que recebiam bilhetes de ração negados aos camponeses.

Uma parte do campesinato, geralmente a mais próspera, era chamada de “kulak” e sujeita a perseguição particular. De certo modo, os kulaks eram tratados como os judeus na Alemanha Nazista – por exemplo, as autoridades publicamente proclamavam que a criminalidade kulak era hereditária e não poderia ser aliviada com a entrega da terra da família para o Estado. De fato, a ideia da criminalidade hereditária kulak continuou mesmo após a guerra, atingindo todo o bloco soviético. Na Polônia, Tchecoslováquia, Hungria e Romênia, “kulaks e crianças kulaks mal educadas” eram enviados à prisão por sabotar seu estoque, mas também por tentar comprar forragem e pão nas cidades para abastecer seu estoque. Eles eram acusados de sabotar a produção socialista e de conspirar com o inimigo titoísta (N. do T.: seguidor do Titoísmo, um comunismo praticado na Iugoslávia durante a tirania de Tito) e americano.

As páginas mais terríveis no relato de Snyder da Grande Fome são aqueles que descrevem incidentes de canibalismo. Os aldeões ucranianos primeiro se alimentavam de cadáveres, porém mais tarde também matavam e se alimentavam de suas próprias crianças, ou mesmo as crianças se alimentavam de seus pais. Alguém, de alma corajosa, devia escrever um estudo acadêmico sobre o canibalismo praticado na Europa Oriental durante os anos 1930 e 1940, não só na Ucrânia, mas também na Leningrado sitiada, entre soldados soviéticos em campos de prisioneiros de guerra alemães, e até, eventualmente, em campos de prisioneiros de guerra soviéticos para os soldados alemães e outros. Curiosamente, não existem relatos de canibalismo entre judeus nos campos de concentração alemães. Isto deve ser devido ao fato de que tais judeus, que não foram fuzilados ou gaseados, receberam alguma alimentação. A morte por fome começou nos campos de concentração alemães somente nos últimos meses de guerra, quando o sistema nazista de rações de baixa caloria para os prisioneiros já não estava mais funcionando.

Mas Stalin não estava satisfeito. Em poucos anos, o Grande Terror, como é chamado, atingiu funcionários do partido e o Exército Vermelho, levando à execução de dezenas de milhares de oficiais e servidores públicos. O Terror também envolvia a matança de centenas de milhares de camponeses e membros de minorias nacionais, mais acentuadamente os poloneses soviéticos e, mais uma vez, os ucranianos. Stalin sentiu a necessidade de explicar as fatalidades da coletivização culpando os inimigos que sabotavam seus planos. Os poloneses vivendo dentro da União Soviética, que chegaram a 600.000 na época, preenchiam os requisitos. Ordenando prisões em larga escala, a polícia estatal buscava por sobrenomes poloneses na lista telefônica. Em Leningrado, quase 7.000 pessoas foram presas; uma grande maioria foi executada em apenas 10 dias. Deve ser admitido que, pelo menos em relação aos militares, a loucura de Stalin foi somente temporária, e que o Alto Comando alemão cometeu um grande erro ao interpretar que o Grande Terror era um sinal de fraqueza nas forças armadas soviéticas. Uma parte dos oficiais soviéticos libertados dos gulags foram aqueles que, entre 1941 e 1945, derrotaram os nazistas.

Na época em que o Grande Terror começou, em 1937, a diplomacia soviética havia mudado do isolacionismo para uma política de Frente Popular, favorecendo a cooperação com todas as forças esquerdistas contra a ameaça fascista de Hitler. Mesmo assim, em casa a capmpanha de terror atingiu seu ápice nesa época, incluindo os Grandes Espetáculos Jurídicos (Show Trials), um procedimento pavoroso inédito. Durante sua existência, incontáveis supostos conspiradores, sabotadores, saqueadores, espiões alemães, poloneses e japoneses, trotskistas e traidores social democratas foram torturados, julgados e executados, ou executados sem um julgamento. Em outras palavras, o Grande Terror era o reconhecimento que o povo não era julgado por sua classe, por sua posição na ordem econômica, mas por suas identidades pessoais e conexões culturais.

Snyder explica bem como a ênfase original bolchevista na luta de classes mudou para uma ênfase em lutar contra infiltradores estrangeiros: mesmo os kulaks eram considerados estrangeiros ou agentes estrangeiros, e assim também eram vistos os comunistas estrangeiros que pediram asilo na União Soviética. As principais vítimas do Grande Terror, entretanto, não foram Nikolai Bukharin e outros líderes comunistas soviéticos, e nem mesmo os poloneses ou outros comunistas estrangeiros, mas compatriotas comuns, muitos dos quais viviam na Rússia por gerações. “Em 1937 e 1938,” escreve Snyder, “um quarto de milhão de cidadãos soviéticos foram fuzilados por pertencer essencialmente a grupos étnicos... Stalin foi o pioneiro em extermínio em massa nacional, e os poloneses foram as vítimas proeminentes entre as nacionalidades soviéticas.” Para ser mais preciso, “das 143.810 pessoas presas sob a acusação de espionagem para a Polônia, 111.091 foram executadas.”

Com o início da Segunda Guerra Mundial em setembro de 1939, Hitler logo ocupou uma grande parte da Polônia. Mas ele não iniciou de imediato o genocídio dos judeus. É verdade que os guetos foram construídos em Varsóvia e Lodz, e que dezenas de milhares de judeus poloneses sucumbiram por fuzilamentos aleatórios, exposição e doenças. Mesmo assim, isso não foi o Holocausto. Snyder mostra convincentemente como o Holocausto surgiu. Para os alemães, a presença repentina de um número gigantesco de judeus representou um dilema imediato. Snyder acredita que, até 1941, os alemães não planejaram aniquilar a judiaria européia. O terror e os fuzilamentos, sim – mas o principal objetivo era empurrar os judeus para fora do continente, para Madagascar ou para o império de Stalin. Somente quando a solução Madagascar provou ser inexequível, e que Stalin não os queria e que mesmo Hans Frank, o governador nazista da Polônia Central, não aceitaria mais judeus, é que os líderes nazistas começaram a pensar numa solução mais drástica.

Nas áreas onde os alemães chegaram somente no verão de 1941, era sua determinação inflexível fazer um trabalho radical – com a assistência da população local – que levou a tais resultados assustadores. E a principal razão para os pogroms a leste da linha Molotov-Ribbentrop aconteceu quando os soviéticos fugiram, no verão de 1941, e o NKVD – a polícia secreta soviética – deixou para trás os cadáveres de milhares e milhares de prisioneiros políticos, que ela havia liquidado no último momento. A população local, da Estônia até o sul da Ucrânia, viam a polícia política soviética como uma instituição judaica e os massacres do NKVD como o trabalho de judeus.

Em dezembro de 1941, quando o Exército Vermelho finalmente parou a Wehrmacht fora de Moscou, a política nazista mudou. Quando o objetivo sagrado de varrer o bolchevismo da Europa provou ser impossível, a grande tarefa remanescente era livrar a Europa da ameaça judaica. É possível que se Hitler tivesse ganho a guerra contra a União Soviética, então os judeus, os poloneses e milhões de outros europeus orientais poderiam não ter sido mortos, mas expulsos para leste nos territórios soviéticos onde os interesses agrícolas dos alemães não interessavam.

Sem a conquista do espaço soviético, a deportação era impossível. Logo, a decisão foi tomada para resolver o “problema judaico” como um todo, através do extermínio em massa. Como Snyder coloca a questão, “a solução final como assassinato em massa ‘estava se espalhando pelo ocidente.’” Mas havia métodos mais “modernos” que podiam ser adotados. Os três centros de gaseamento construídos na Polônia ocupada (Belzec, Sobibor e Treblinka), seguidos por um outro em Auschwitz-Birkenau, foram projetados para exterminar a população inteira judaica da Europa a oeste da antiga fronteira polonesa-soviética. A leste daquela linha, nas terras onde a maioria dos judeus europeus uma vez viveram, o trabalho já havia sido feito pelos esquadrões da morte.

Nos campos de concentração do Terceiro Reich, um milhão de prisioneiros teve mortes miseráveis durante o período nazista. Mas 10 milhões de outros, que nunca entraram nestes campos foram executados (a maioria judeus), deliberadamente deixados morrer de fome (a maioria prisioneiros de guerra soviéticos) ou gaseados em “centros especiais de matança”, que não eram apenas campos de detenção. Em Auschwitz, a esmagadora maioria dos judeus eram levadas direto dos vagões para as câmaras de gás em sua chegada. E Auschwitz foi na verdade uma espécie de epílogo para o Holocausto judeu. Na época em que as principais câmaras de gás entraram em operação em 1943, a maioria das vítimas judias da Europa já estavam mortas.

Somente no final da guerra ocorreu a alguns líderes nazistas que milhões de judeus e prisioneiros de guerra soviéticos representavam uma força de trabalho incalculável, e que muitos cidadãos soviéticos não-judeus estariam mesmo preparados para lutar ao lado dos alemães. No final da guerra, um milhão de cidadãos soviéticos estavam ajudando os alemães com armas. Os judeus também eram colocados para trabalhar em números enormes na indústria de guerra alemã, tais como aquelas que operavam em Auschwitz. O que os alemães nunca realmente compreenderam é que para tornar o trabalho escravo eficiente é necessário tratar e alimentar decentemente essas pessoas.

Nas terras de sangue e no resto da Europa oriental, a estória do último ano da guerra não foi aquela mostrada nos filmes de propaganda americanos, com mulheres bonitas parisienses recebendo os soldados com flores e sorrisos. No leste, a estória do último ano da guerra e do primeiro ano do pós-guerra foi a da onde estupros contra as mulheres alemãs feita pelos soldados soviéticos; de refugiados congelando até a morte nas estradas levando à Alemanha; dos soviéticos desarmando e mesmo prendendo opositores poloneses anti-nazistas; de poloneses e outros europeus orientais assassinando judeus que tiveram a audácia de sobreviver aos campos e desafiar os saqueadores de seus pertences; de sobreviventes judeus entrando na polícia política comunista; de outros judeus sendo presos pela mesma polícia política; e outros judeus fugindo da Europa Oriental para sempre.

Mas “Terras de Sangue” tem um defeito, qual seja, quando Snyder lida com as consequências da guerra na União Soviética. Stalin tornou-se obcecado pelos judeus. Membros do Comitê Anti-Fascista Judeu, que tinham conduzido uma campanha eficiente de propaganda no interesse da aliança durante a guerra entre o Kremlin e as democracias ocidentais, foram presos e sentenciados por um julgamento secreto em 1952. Snyder falha em dar significância ao caso. Afirmando que havia 14 réus (de fato, havia 15), ele se refere a eles como “judeus soviéticos mais ou menos desconhecidos.” Mas entre os 15 estavam os renomados escritores íidiche Peretz Markish e David Bergelson, que tinham reputação internacional. E o principal réu, Solomon Abramovich Lozovsky, era um velho bolchevista que foi mencionado no livro de John Reed, “Dez Dias que Abalaram o Mundo” por seu papel na Petrogrado revolucionária.

Fontes:

http://www.nytimes.com/2010/11/28/books/review/Rubenstein-t.html?_r=1&

http://www.newrepublic.com/article/books-and-arts/magazine/79084/snyder-bloodlands-hitler-stalin#

http://www.guardian.co.uk/books/2010/oct/09/bloodlands-stalin-timothy-snyder-review

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