domingo, 30 de junho de 2013

[POL] Hitler, um perfil do poder

Ian Kershaw


Como tema de um perfil de poder, Hitler é, tanto quanto seja possível conceber, um caso notável. Em seus primeiros trinta anos de vida foi um João-ninguém. Nos vinte e seis anos restantes de sua existência, deixou uma marca indelével na história, como ditador da Alemanha e instigador de uma guerra genocida. Como pôde tal figura, mesmo que por curtos anos, chegar a dirigir os destinos de uma das nações econômica e culturalmente mais desenvolvidas e avançadas do mundo?

É comum, hoje em dia, considerar-se que as abordagens se enquadram em duas categorias principais, que passaram a ser denominadas de “intencionalista” e “estruturalista” (ou funcionalista). No grupo “intencionalista” presume-se que a história do nazismo é a da implementação programada e consecutiva das intenções ideológicas de Hitler. Isto é, ele é concebido como uma clássica personificação do poder num Estado totalitário.

A abordagem contrastante, por outro lado, destacou o condicionamento das decisões políticas pelas pressões “estruturais”, tais como as limitações econômicas ou pelo “funcionamento” específico de alguns componentes-chaves do domínio nazista. À luz disso, Hitler foi retratado como preocupado com a manutenção de seu prestígio e de sua autoridade pessoal. Longe de ser um líder de poder pessoal irrestrito, Hitler poderia ser encarado como sendo um ditador fraco.

O “poder” pode ser abstratamente definido como “a probabilidade de que um ator, dentro de uma relação social, fique em condições de exercer sua própria vontade a despeito da resistência encontrada.” Uma chave para a compreensão da expansão gradativa do poder de Hitler pode ser encontrada em outro conceito de Max Weber: o de “dominação carismática”. Esse conceito se baseia nas percepções – por parte de um “séquito” de adeptos – de heroísmo, grandiosidade e de uma “missão” num “líder” proclamado. Tende a emergir em situações de crise e está sujeita a ruir em virtude da impossibilidade de atender às expectativas ou por se “rotinizar” num sistema capaz de se reproduzir somente através da eliminação da essência “carismática”.

Os aspectos específicos da variação alemã da “dominação carismática” decorrem da interação da crise generalizada que se vivenciou na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial (e particularmente nos início dos anos trinta) com alguns traços específicos da cultura política alemã.

No início da década de trinta, estava à mão um pleiteante que era apoiado por uma organização que trazia todas as marcas de uma “comunidade carismática”. Ela abrangia o séquito imediato na elite da liderança nazista. Seu relacionamento com Hitler era determinado por vínculos de lealdade pessoal de um tipo arcaico, quase feudal. Outros defensores e exploradores cruciais do “carisma” de Hitler eram os líderes e funcionários das organizações estatais – dentro das quais a mais importante era a SS. Além deles, havia a massa de “adeptos de Hitler” na população em geral.

O “carisma” da personalidade de Hitler enraizava-se no poder que fluía – para os que lhe eram receptivos – de sua “ideia”, seu credo político, juntamente com a notável habilidade de agitar as massas.

Em termos de aparência física, Hitler era inexpressivo. Os hábitos pessoais eram rotineiros e conservadores. Embora seus conhecimentos fossem incompletos, unilaterais e dogmaticamente inflexíveis, ele era inteligente e sagaz. Gostava da companhia das mulheres, especialmente quando eram bonitas. Sabia fazer rir os que o cercavam e tinha um forte senso de lealdade. Entretanto, essas características pessoais teriam sido insuficientes para chamar a atenção para Hitler. Mas seu credo político e a convicção com que o expressava transformaram-no numa personalidade efetivamente extraordinária.

A essência da visão pessoal do mundo de Hitler compreendia a crença na história como uma luta racial, o antissemitismo radical, a conquista do “Lebensraum” (espaço vital) à custa da Rússia e uma luta de vida ou morte, até o fim, contra o marxismo – personificado, de maneira concreta, no “bolchevismo judaico” da União Soviética. Em meados da década de 1920, portanto, Hitler havia desenvolvido uma filosofia bem acabada, que lhe oferecia uma visão completa do mundo, de seus males e de como superá-los.

Hitler via a si mesmo como a mais rara das combinações: o “idealizador” e o “político” – o executor da ideia. Foi a combinação de “profeta” e propagandista que deu a vantagem de Hitler sobre todos os outros pretendentes potenciais à liderança na elite suprema do Partido Nazista. Faltavam a outros nazistas destacados a combinação do seu brilho demagógico, sua capacidade de mobilização e a unidade e “força explicativa” universal de sua visão ideológica. Rudolf Hess era introvertido. Julius Streicher não passava de um demagogo racista. Herrmann Göring era mais um homem de ação do que de ideias. Ernst Röhm era militar e organizador capaz, mas faltavam-lhe visão ideológica e talento retórico. Heinrich Himmler era um bom administrador, mas dotado de personalidade fria e desprovido de atrativos populares. Hans Frank era um tipo fraco e hesitante, emotivo e subserviente. Todos esses líderes nazistas se juntaram ao Movimento quando ele estava no ostracismo político, muito antes de chegar perto de conquistar o poder. Dificilmente se pode considerar o oportunismo político como a principal motivação de seu compromisso com a causa nazista. Na verdade, central para esse núcleo da “comunidade carismática” foi o poder da personalidade de Hitler.

A questão de como pôde um candidato tão improvável chegar ao poder tem sido formulada desde que Hitler foi nomeado Chanceler do Reich em 30 de janeiro de 1933. Foi como propagandista, agitador e demagogo incomumente talentoso que Hitler, a princípio, atraiu as atenções. Foi Hitler que anunciou o programa do Partido em 24 de fevereiro de 1920. O número de membros atingiu 2.000 no final de 1920 e 3.300 em agosto de 1921. Foram as garantias financeiras de Dietrich Eckardt, um dos mentores intelectuais de Hitler, somadas a uma contribuição de 60.000 marcos de um fundo do Reichswehr, obtida por Ernst Röhm e Karl Mayr, que permitiram ao Partido comprar seu próprio jornal, o “Völkisher Beobachter”, no início de 1921. O Partido continuou a se expandir rapidamente. Em fins de 1922, havia aproximadamente 20.000 membros e, na época do Putsch, cerca de 50.000.

Hitler roubou a cena durante seu julgamento, em fevereiro e março de 1924, dando a ele o direito de ser encarado como a nova figura de proa do movimento. Depois de sua libertação do presídio e da refundação do Partido em fevereiro de 1925, todo o poder sobre as decisões relacionadas com questões ideológicas e organizacionais residia na pessoa de Hitler. Nesse período, o culto a Hitler institucionalizou-se plenamente. Um símbolo externo expressivo da supremacia de Hitler foi a introdução da saudação “Heil Hitler” como uma forma compulsória de cumprimento entre os membros do Partido.

A força da posição de Hitler dentro do Partido remonta, principalmente, aos anos de “ostracismo” de 1925-28. Na época em que começou a onda eleitoral do nazismo no outono de 1929, a natureza do NSDAP como um “Partido do Führer”, no qual a ideia e a organização eram inseparáveis de seu líder, estava firmemente estabelecida.

O atrativo do líder “carismático” para as massas tem apenas uma relação indireta com a verdadeira personalidade e as atribuições de caráter desse líder. Provavelmente para a maioria dos que acabaram votando nos nazistas as questões prosaicas do “feijão com arroz” ou até o sentimento de que Hitler não poderia sair-se pior do que os demais predominaram sobre o fervor ideológico. Depois de 1929-30, a multiplicidade de grupos de interesse que atuavam fora do Movimento Nazista considerou o nazismo uma proposta atraente. Não obstante, uma vez expostos ao nazismo, todos os adeptos potenciais ficaram também inevitavelmente expostos à imagem “carismática” de Hitler. Este último inspirou, nos milhões que se deixaram atrair, a convicção de ele, e somente ele, apoiado por seu Partido, poderia por fim ao sofrimento vigente e conduzir a Alemanha a uma nova grandeza. O texto nu e cru de seus discursos os revela como um catálogo de banalidades e obviedades. Mas o clima, o cenário previamente montado e a aura mística de grandeza messiânica em torno de Hitler tornavam eletrizantes suas palavras para as plateias de massa.

Hitler observou a propaganda como sendo, de longe, a tarefa mais importante do Partido Nazista. Toda propaganda, de acordo com ele, tem que restringir seu nível intelectual à compressão do membro mais estúpido de sua plateia. O tema tem que ser explosivo. É agitar a raiva e a paixão e atiçar o fogo até que a multidão se enfureça.

As técnicas de propaganda de Hitler para conquistar as massas teriam pouco êxito, entretanto, sem as condições externas – Depressão, o agravamento da crise de governo e a desintegração dos partidos. Sem esse “mercado”, Hitler teria continuado a ser uma preferência minoritária insignificante. Sua plena conquista das massas veio somente após os nazistas silenciarem a opinião pública oposicionista e adquirirem controle completo dos meios de comunicação de massa. Acima de tudo, a imagem que a propaganda nazista retratava reiteradamente era a do poder, da força, do dinamismo e da juventude – uma marcha inexorável para o triunfo, um futuro a ser conquistado pela confiança no Führer.

Nota: Este texto compreende uma síntese dos capítulos 1 e 2 do livro homônimo de Kershaw. Para um entendimento mais completo do poder de Hitler sugere-se a leitura do livro.


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