domingo, 5 de janeiro de 2014

Calígula: O louco que foi sem nunca ter sido

Vinícius Cherobino

Aventuras na História, nº 95, junho 2011

Esqueça a imagem do tirano pervertido e insano. O imperador era, sim, um hábil populista. Acontece que sua história foi escrita pelos inimigos.

 
Psicopata, narcisista, assassino, depravado. Segundo Suetônio escreveu no século 2 em A Vida dos Doze Césares, era simplesmente um monstro. As comemorações pela indicação de Calígula como autoridade suprema teriam levado à degola 60 mil prisioneiros em cerca de três meses. Mas aquilo era só o começo – Roma nunca havia presenciado tamanha perdição. O imperador tratava abertamente a irmã Drusilla como esposa. Servia-se também das outras irmãs, Livilla e Agripina, e as prostituía. Costumava promover banquetes e orgias que culminavam com a tortura e execução de prisioneiros. Obrigava, inclusive, as esposas dos auxiliares mais próximos a participar das festas. “Quase não houve mulher, por menos ilustre que fosse, que ele não tivesse desrespeitado”, diz Suetônio. Para o historiador romano Cássio Dio, “não havia homem mais libidinoso”.

Perdulário, suas extravagâncias incluíam pérolas banhadas em vinagre como aperitivo. Gastava tanto dinheiro que a dada hora se viu obrigado a confiscar propriedades e a criar impostos sobre tudo, até a prostituição.

Atribuía a si mesmo qualidades divinas. Encomendou da Grécia uma estátua de Júpiter Olímpico, mandou cortar a cabeça e a substituiu por uma inspirada na sua própria. Num templo dedicado a ele, ostentava uma estátua de ouro em tamanho natural, vestida todos os dias com uma cópia de seus trajes.

Líder incompetente, humilhava com frequência seus pares, na indiscrição dos banquetes ou na política. Nomeou o cavalo Incitatus magistrado superior de Roma. O animal era mantido num luxuoso estábulo dentro do palácio imperial. E Calígula exigia que os senadores despachassem com o colega equino.

Um crápula completo, certo? Errado. Calígula não é tão diferente dos demais imperadores romanos. E, até pelo pouco tempo que permaneceu no poder, quatro anos, conseguiu feitos importantes. Mas a fama de maníaco atravessou os séculos intacta – que o diga o filme Calígula, de 1979. Mas por que sua imagem foi tão deturpada?

Um olhar atento sobre os autores das histórias originais a respeito do imperador ajuda a esclarecer as distorções. Como autoridade política, Calígula trabalhou sobretudo para concentrar poder, confrontando o Senado e a aristocracia romana. Os historiadores da época dependiam ou eram representantes do Senado. “É como tentar entender a história do século 21 e tudo o que sobrou foi o tabloide National Enquirer (uma espécie de Notícias Populares americano)”, diz Anthony Barrett, professor de história romana na Universidade da Columbia Britânica. “É uma fonte importante, mas não pode ser tomada como totalmente verdadeira. Os fatos demandam análise crítica e é preciso tentar corroborá-los com evidências arqueológicas.”

O filósofo Sêneca, o Jovem, fez um dos poucos relatos contemporâneos ao governo. Ele era rival da dinastia Júlio-Claudiana, à qual pertencia o imperador. Acabou exilado em 41. Suetônio, conhecido por abordar seus personagens sob o viés mais pitoresco possível, escreveu sete décadas após a morte do governante. Já Cássio Dio o fez quase 200 anos depois. Dos Anais de Tácito sobre Calígula, uma das narrativas mais confiáveis da Roma antiga, apenas algumas referências são encontradas hoje. “São textos literários, com pretensões retóricas, e não científicas”, diz Paulo Sergio de Vasconcellos, professor de letras da Unicamp.

A revisão desses textos confrontados com investigações arqueológicas e o estudo de moedas do período, está longe de reproduzir um maluco desvairado.

Está claro que o imperador se relacionava com a sua família de maneira diferente que os outros fizeram. As irmãs eram presença constante ao seu lado nos eventos públicos e foram imortalizadas em moedas. Mas nada disso significa que havia uma orgia em família. “O incesto foi uma criação posterior da historiografia”, diz Fábio Faversani, historiador da Universidade Federal de Ouro Preto. Há ainda uma explicação política. Como não tinha grandes conquistas militares, Calígula precisava se provar merecedor do posto pela linhagem que remontava a Augusto. Ao homenagear os familiares, justificava a própria posição.

Ele foi acusado de levar Roma à falência. Mas realizou grandes construções. Concluiu projetos iniciados por Tibério e iniciou outros. Na área militar, ele não teve nada de brilhante, mas sua atuação foi positiva. Iniciou a conquista da Britânia, atual Inglaterra. Antes, indicam as evidências arqueológicas, criou uma estrutura de fortes e armazéns, preparando-se para a conquista do território, efetivada por seu sucessor, Cláudio.

Mas a característica mais marcante de Calígula está na sua adoração pelo entretenimento. Em contraste com a severidade de Tibério, abraçou as aparições públicas e a realização de festivais, que incluíam combates de gladiadores e com feras selvagens, corridas de cavalos e peças teatrais. Mandou reduzir as armaduras dos lutadores, o que o fez ser ainda mais adorado pela plebe, especialmente nas ocasiões em que distribuía comida e dinheiro.

Essa gastança poderia ter destruído as finanças públicas e iniciado uma espiral inflacionária. E Cláudio teria pago o pato. Mas não, não há registro de problemas financeiros no governo dele. Isso não quer dizer que a economia foi perfeita sob Calígula. Serve,  porém, como indício de que ele talvez não fosse o perdulário inconsequente que os historiadores clássicos pintaram. Definir sua figura por estereótipos, como os fatos demonstram, está longe de apresentar uma noção satisfatória de quem foi Calígula.
 
 
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3 comentários:

Anônimo disse...

Uma matéria da revista História Viva sobre Calígula, que me parece mais esclarecedora e realista:
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/um_maluco_no_poder.html

Emerson Paubel disse...

Interessante o artigo da História Viva. Isso demonstra o quanto os historiadores divergem sobre a vida de Calígula. Entretanto, a principal biografia do imperador foi feita por uma pessoa que viveu décadas após a morte dele, e mesmo assim era adversário político. Numa situação dessas, é claro que há exageros. me parece claro que a vida dos imperadores, até por causa do clima de instabilidade que tal cargo gerava, poderia fazer com que o imperador fizesse loucuras, mas as extravagâncias de Calígula são tão medonhas que parecem ter sido descritas deliberadamente apenas para desmerecê-lo diante da História.

iojr disse...

"confio mais em monumentos e na lógica que em relatos históricos."

André Geiger